terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

Alma

Hiolanda fez filhos, amigos, inimigos e uma carreira. Falava sobre todos os assuntos e se cuidava muito. Sempre preocupada com o quê combinava com o que na hora de se vestir. Usava batom, calças jeans, realmente algo não muito casual para a maioria das oitentonas. Oitenta anos. Dois filhos e uma filha, casados, bem sucedidos e ajustados. Hiolanda enterrou o marido há 20 anos atrás, sem saudosismos, lembrava-o constantemente para ter bem viva a certeza de não se casar novamente. De cabeça erguida seguiu pela vida, coisa que o finado não conseguiria se tivesse escapado do ataque fulminante do coração. Ela se refere a esse episódio como ataque fulminante de consciência e logo foge do assunto. Havia descoberto que ele a traia há dezoito anos. Depois de ter superado todos os contratempos, palavra essa que ela adorava usar como bordão de eufemismo, percebeu que já vivera tudo, que já havia visto e ouvido de tudo e concluiu que era hora de morrer. E morrer na hora determinada e dia marcado por ela mesma, em seus pensamentos via que todos os dias da sua vida foram dignos, nunca prejudicou ninguém, nenhum remorso. Falara mal de alguém? Sim, mas comentários muito merecidos, então submergida nessa ausência de culpas e pecados ponderou e achou muito justo decidir como, quando e onde morrer. Possuía sentimentos e aparência forte, coisas que um corpo magro e enrugado costumava camuflar. Era dotada de uma inteligência e língua muito aguçadas. Sabia todas as datas e fatos relevantes de cor. No auge das faculdades mentais e psicológicas, salvo algumas dores de velho, disse a si mesma: é hora de morrer! Se levarmos em consideração os anos, os oitenta anos vivido por ela, poderia se entender essa compreensão do já vivido, mas sempre tendemos a pensar que quem chegou aos oitenta quase sempre quer mais. Hiolanda como sempre inovadora percebeu o passar dos dias e suas conseqüências e certa de tudo determinou que era sua vez de partir. Nessa quarta-feira em sua casa não se ouviram histórias por ela contadas como de costume, o que viram foram diários e fotos espalhados datados de 30 anos atrás. Neles Hiolanda se viu ainda sem a sabedoria de agora e sem conclusões maiores, percebeu que a velhice lhe deu uma visão muito além. E as coisas ocultas naquela época agora lhe eram claras como água. Por algumas horas saboreou sensações que há muito não tinha, releu nomes e reviu quase todas as personagens de sua vida. E que vida! Se faltou alguma coisa, os anos preencheram cada lacuna e os livros a levaram às viagens que não fez de fato. Todo o saudosismo esgotou-se e guardou suas recordações no fundo do baú e do seu coração, olhou para os retratos em cima da mesa da sala de jantar, fragmentos imóveis de vida! E a idade lhe deu o conformismo sabiamente antes ignorado já que errar também é viver. Passou a mão na enorme e velha agenda e gastou um bom tempo na triagem dos nomes que ela gostaria de ter nos tributos póstumos em sua homenagem, pensou em ligar para alguns deles e logo abandonou a idéia, pois seria muito estranho ligar para as pessoas as convidando para seu enterro. E como falar para todos que lhe convinha morrer às 10h30min do próximo sábado? Realmente era excêntrico demais, até para Hiolanda. Pensou em muitas alternativas, e concentrada naquilo tudo nem percebeu o rosto interrogativo da sua filha que lhe servia de companhia, ao ver todos aqueles retratos, folhas antigas espalhadas e as atitudes da mãe. Hiolanda aproveitou para lhe dar a grande noticia: iria morrer no sábado, o sábado de aleluia. Calmamente ela lhe explicou todos os seus pensamentos e lhe garantiu que no sábado às 10h30min estaria partindo para sempre. O raciocínio lógico e frases feitas assustaram sua filha que após longo silêncio baixou a cabeça, sorriu e saiu num sinal enfático de reprovação. Aquilo tudo era assustador. A semana passara e Hiolanda nos seus últimos preparativos espirituais ocupava todo o seu tempo. Na manhã do sábado, apesar do aviso apocalíptico ela estava calma e sua filha disfarçadamente angustiada. Hiolanda se distraiu por alguns instantes com suas flores e quando voltou a si eram 10h28min, gritou sem desespero por sua filha pedindo-lhe a vela. Vela? Assustada e confusa, sem receber maiores explicações correu por impulso a procura da vela, acendeu e trouxe depressa colocando entre suas mãos. A velha ali sentada em sua cadeira preferida, ao lado de suas flores preferidas, se despediu da vida deixando um último sorriso.

Um comentário:

Rafaella Teotônio disse...

Eu gostei ficou bem diferente dos outros textos, mas dá pra senhora deixar de preguiça e ajeitar os errinhos?? rsrsrs